12 outubro 2007

Sou

Eu sou aquelas páginas que ele arrancou, os suspiros que ele abafou, o prazer que ele omitiu, a transgressão, a poesia escondida entre as cartas não entregues... Talvez para ele era pra eu ter sido a brincadeira de uma noite, a sobremesa de um casal, e, da garrafa de champanhe, apenas a terceira taça. Depois fui transformada num segredo, numa espécie de doença fatal.
Eu sou a pessoa pra quem ele ligava de madrugada, a quem ele procurava clandestinamente quando ela saía. Eu sou o motivo de todas as brigas necessárias, mas que sempre existiram. Eu sou a tentativa de salvar uma relação falida. Mas me tornei um susto, um peso, o imprevisto pra quem tinha sua narrativa sob controle.
Eu sou aquele ponto e vírgula no lugar do ponto final de quem já tinha escrito o último capítulo do seu romance morno. Eu sou as metáforas novas, a viagem inventada, os dias que ele sorria espontâneo e que me fazia sorrir. Eu sou o orgasmo mais intenso, a febre entre os lençóis, a dança dos travesseiros coloridos. Eu sou o carinho sem pedir, o banho do prazer inesperado, o beijo de cinco em cinco minutos. Eu sou o poema que relata o encaixe dos nossos corpos. Sou a história sobre anjos, sobre fadas e o abraço mais apertado.
Eu sou as páginas que ele desistiu de publicar pra se proteger, e se preservar.
Fui arrancada da história dele como essas páginas. Fui escondida entre juras de um falso amor que ele fazia à ela e ela à ele. Eu sou as tantas frases amassadas, descartadas da seleção dos capítulos. Mas sou a poesia escrita, tatuada no corpo. Sou a única digital que ele não conseguiu tirar no banho.
Eu sou essa emoção que ele rasgou da narrativa pra que os holofotes se voltassem todos pra sua história de amor mais convencional. Eu seria a quebra da linearidade, a falta de estrutura do texto, o capítulo independente do resto do livro, aquela que sobreviveu sozinha.
Eu sou o sentimento verdadeiro, o reconhecimento que ninguém havia lhe dado. Eu sou aquela que ele não precisou pedir atenção, e nem pedir para ser amado. Eu sou o simples, o espontâneo, o inesperado. Eu sou aquela que disse "eu te amo" antes dele. Sou os versos mal elaborados e apagados por ele. Eu sou a preocupação ciumenta. Eu sou a apaixonada que ama e que não sabe e não consegue agradar, e que nunca agradou. Eu sou a menina que fala como uma criança, mas que é uma mulher. Sou o sonho e o desejo de pegar na mão dele e ir na frente de todos e dizer "eu tenho orgulho de amar esse homem". Eu sou o silêncio deitado no quarto, eu sou a musica que lembra. Eu sou as flores invadindo a tarde dele desavisadamente. Eu sou o final da espera, o amor de outras esferas.