23 novembro 2007

Afinidade

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. O mais independente. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida. É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro. Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depoisque as pessoas deixaram de estar juntas.
Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmosfatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento. Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios. Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar. Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar. Só entra em relação rica e saudável com o outro, quem aceita para poder questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar, não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
Isso é afinidade.
Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceitao outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
Questionamento de afins, eis a influência.
Questionamento de não afins, eis a guerra. A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
Independente dele. A quilômetros de distância.
Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem para buscar sintonia com pessoas distantes, com amigos a quem não vemos, com amores latentes, com irmãos do não vivido? A afinidade é singular, discreta e independente, porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceuo vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relaçãoexatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidasnem pelas pessoas que as tem. Por prescindir do tempo e ser a ele superior, a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós, para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes. Sensível é a afinidade.
É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau, porque o que define a afinidade é a sua existência também depois. Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depoisencontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir restituir o clima afetivo de antes, é alguém com quem a afinidade foi temporária.
E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta, ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas, plantios de resultado diverso. Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças, é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quantos das impossibilidades vividas. Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou, sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.